A doença é um facto inextrincável da vida. Já todos estivemos doentes, algum dia. Reconhecemos quando vemos um doente. Acompanhamos doentes. Tratamos doentes. Fomos doentes. Somos doentes. Seremos doentes.
A doença muda a realidade da pessoa. O doente apresenta sintomas, sente as limitações inerentes, procura ajuda e confia nela. Sente incerteza. Assim como a esperança.
Se a doença é crónica, os sintomas, as limitações, a procura e a confiança na ajuda são ingredientes diários. A doença crónica é permanente, produzida por alterações irreversíveis no sistema orgânico, cria necessidades altamente variáveis e individualizadas, mas prolongadas no tempo. Exigirá uma formação especial do doente e/ou família para a gestão do quotidiano e longos períodos de supervisão e cuidados. E se, por definição, a doença crónica é aquela que não vai curar, então diariamente são renovadas a incerteza e a esperança num acto tão natural como navegar as marés. Passamos do estar doente para ser doente.
Há muitos anos, Margaret Mead (antropóloga) explicava perante uma classe de alunos qual era, na sua opinião, o primeiro traço da existência da civilização humana: a descoberta de um fóssil humano com um fémur partido… e cicatrizado. Na natureza, a grave limitação associada a um fémur partido é o equivalente a ficar exposto à fúria dos elementos, ser preza fácil para outros animais, não poder procurar alimento ou proteção. O fémur cicatrizado significa que alguém ficou, protegeu e nutriu. E esperou a cicatrização. Cuidou. Civilização é ajuda. O primeiro traço da Humanidade é o cuidar.
A propósito do Dia Europeu dos Direitos dos Doentes, mais do que repetir o decálogo dos direitos e deveres destes, urge redescobrir a humanidade no doente. Pois este era uma pessoa e agora é um doente. A pessoa doente continua a ser, na essência, a mesma pessoa. Humana. Ser humano é viver nos limites frágeis de um corpo que deve ser cuidado. O ser humano tem um valor único e irrepetível. Agimos pelo desejo de nos mantermos a mesma pessoa pelo maior tempo possível e o que somos não se esgote no passado e no presente e ultrapasse o limite da nossa existência.
Quando o meu fémur se parte (ou qualquer outra doença me bate à porta) tudo isto fica ameaçado. Sou vulnerável. Procuro ajuda. Preciso de quem me ouça no que sinto e me veja como a pessoa. Não sou uma consulta, um diagnóstico ou uma receita. Sou pessoa: doente, sim, mas pessoa. Humana. Mereço ser informado sobre a minha situação, dentro do que conseguir ouvir e perceber. Quero que me curem, ou me tratem se não houver cura. E se não houver cura nem tratamento, por favor, que me cuidem. Que não se esqueçam dos meus familiares que sofrem tanto ou mais do que eu. Confio que o profissional de saúde a quem recorrerei terá vontade de me ajudar, saberá ouvir-me o que me preocupa e que me abordará de forma respeitosa, discreta e reservará para os nossos encontros a informação que eu lhe confiar. Confio na sua diligência para apontar caminhos dentro do que é o seu conhecimento ou o conhecimento de outros profissionais para os quais me encaminhará. Reconheço-o como meu advogado para as minhas questões de saúde e que, para além de tratar, também me defende e educa. Sei que respeitará as minhas decisões, sendo elas conscientes e plenamente informadas, ainda que não sejam do seu acordo.
Hoje, como sempre, o desafio é que a pessoa, ainda que doente, nunca deixe de ser pessoa. Humana.
Autor: Rui Carneiro, Médico de Medicina Interna com Competência em Medicina Paliativa, Coordenador do Núcleo de Estudos em Bioética da Sociedade Portuguesa de Medicina Interna