Cientistas deram mais um passo para chegar a um tratamento para a doença neurodegenerativa fatal de Machado-Joseph, depois de uma equipa do Centro de Neurociências da Universidade de Coimbra ter identificado e bloqueado um evento chave responsável pela destruição do cérebro.
Várias doenças neurodegenerativas, incluindo a Doença de Machado-Joseph (DMJ), mostram depósitos anormais de proteína nas áreas afetadas pela doença, que os cientistas acreditam ser o estágio final de uma cascata de eventos que começa com a clivagem da proteína em fragmentos tóxicos que, em seguida, irá desencadear todo o processo de destruição do cérebro.
Para os cientistas o problema tem residido na dificuldade em localizar os fragmentos tóxicos durante a doença, para que possam compreender o papel que desempenham. Agora, num estudo publicado na revista científica ‘Brain’, uma equipa de cientistas liderada por Luís Pereira de Almeida, mostra que a proteína ataxina 3 mutante, que se encontra na base da Doença de Machado-Joseph, pode ser cortada pela molécula calpaína em fragmentos tóxicos que provocam a formação dos depósitos de proteína anormal.
O estudo indica que quando a calpaína é bloqueada, os fragmentos tóxicos desaparecem, e a destruição do cérebro termina. Isto leva os investigadores a considerar que há uma ligação entre os fragmentos tóxicos e a neurodegeneração.
“Os resultados do estudo asseguram que pode ser desenvolvido um medicamento para bloquear a calpaína, e desta forma tornar-se no primeiro tratamento capaz de parar a DMJ”, indica o investigador Luís Pereira.
Luís Pereira acrescenta ainda que “mesmo que não possa impedir totalmente a clivagem da ataxina 3, uma vez que esta é uma doença de início tardio, poderá reduzir a velocidade do processo, o que seria suficiente para parar a doença durante o tempo de vida dos pacientes. Isto seria uma vitória incrível sobre uma terrível doença”.
A DMJ ou ataxia espinocerebelar tipo 3, é uma doença neurodegenerativa fatal que provoca “incapacidade de controlar os movimentos do corpo” (ou ataxia) e para a qual não há atualmente nenhum tratamento. É uma doença rara, mas em locais onde a incidência é mais elevada, como na ilha açoriana das Flores, pode afetar 1 em cada 140 indivíduos.
Uma doença com um quadro que, para além de ser fatal, junta o facto de que a gravidade da doença tende a aumentar à medida que passa de uma geração para a geração seguinte.
A doença é transferida de um pai afetado para metade dos filhos. Este facto é como uma maldição terrível que cai sobre os que herdam a mutação, por isso é urgente encontrar um tratamento.
Os investigadores conhecem as causas da DMJ, sabem que há um ‘pedaço aberrante’ de ADN que se multiplica dentro do gene DMJ 1, mas ainda não compreendem o que provoca a neurodegeneração. Será que está ligada aos depósitos de proteínas ou aos pequenos fragmentos que parecem desencadear todo o processo da doença? E o mais importante é como parar esse processo? Questionam-se os investigadores.
A chave para as respostas, de acordo com Ana Simões, investigadora e primeira autora do estudo, e Luís Pereira e os outros investigadores da equipa, está no que leva a ataxina 3 a ‘viver’ fora do núcleo das células, enquanto os depósitos da ataxina 3 mutante se encontram dentro do núcleo (apesar da proteína mutante ser maior, e supostamente ter mais dificuldade para atravessar o núcleo).
Os investigadores indicam que “se for possível saber por que motivo isto acontece, então seria possível bloqueá-la e interferir com a doença”.
Uma hipótese é a do “fragmento tóxico”, dado que várias doenças neurodegenerativas são desencadeadas pela formação de fragmentos tóxicos dessas mesmas proteínas. Recentemente foi demonstrado que as calpaínhas produzem fragmentos tóxicos a partir da ataxina 3 mutante. Estes fragmentos escapam a mecanismos de controlo de qualidade da célula.
Isto não só pode explicar como os depósitos anormais entram no núcleo (uma vez que são os fragmentos e não a proteína que entra), mas também nos dá um potencial elemento para parar a DMJ, bloqueando a calpaína e assim a formação de fragmentos.
Pode a calpaína ser a chave para a neurodegeneração da DMJ e para o tratamento? A equipa de Luís Pereira refere no estudo publicado que investigou esta possibilidade usando o único inibidor conhecido no corpo, uma molécula chamada calpastatina. A ideia é que se a calpaína for crucial para a DMJ, então a calpastatina deverá ser capaz de pará-la.
Os investigadores usaram ratinhos com diferentes níveis de calpastatina no cérebro, bem como a ataxina 3 mutante, e verificaram que quando colocaram grandes quantidades de calpastatina no cérebro de um ratinho com a DMJ, o número de depósitos de proteínas anormais reduziu, bem como reduziu a neurodegeneração e disfunção neural típica da doença.
Os ratinhos tratados com calpastatina apresentaram menor atividade de calpaína (quando comparada com ratinhos ‘normais’ com a DMJ), provando que a calpastatina afetou a calpaína.
A hipótese de que a calpastatina age parando a formação de fragmentos tóxicos foi confirmada quando os fragmentos da ataxina 3 mutante foram encontrados em quantidades elevadas nos ratinhos doentes, mas em muito menor número nos ratinhos tratados com níveis elevados de calpastatina.
Os investigadores anotaram também que os ratinhos doentes tinham quantidades muito mais baixas de calpastatina em comparação com os saudáveis, e que os níveis de ataxina 3 mutante eram maiores nos cérebros dos ratinhos com a DMJ.
Esta diminuição da calpastatina nos ratinhos com DMJ, em comparação com os ratinhos sem DMJ, enfatiza ainda mais a relevância da calpastatina na doença.
Estes resultados demonstram, pela primeira vez em indivíduos vivos (neste caso em ratinhos), uma ligação entre o colapso da ataxina 3 mutante e a formação de depósitos de proteínas anormais com as lesões neuronais provocadas pela DMJ.
Os resultados do estudo também provam que os fragmentos tóxicos são responsáveis na destruição do cérebro. Luís Pereira explica: “é como se a ataxina 3 se torne ‘importante’ pelas calpaínas, com estes fragmentos ‘armados’ forçando o acesso aos centros de controlo das células onde estes bloqueiam as mais diversas funções e causam a morte celular. Por serem tão pequenos têm melhor facilidade para entrar no núcleo da célula e provocar lesões”.
Para os cientistas, o mais importante do estudo é que este mostra que a calpastatina é capaz de parar a neurodegeneração na DMJ.
As experiências foram feitas em ratinhos e agora a questão é saber se o mesmo se passa nos seres humanos. Algumas experiências levadas a cabo pela equipa de investigadores de Luís Pereira são muito promissoras, e mostram que os níveis de calpastatina são também mais baixos do que o normal nos cérebros de pacientes com a DMJ, sugerindo um mecanismo de doença semelhante. Isto é uma grande notícia, não só para os cientistas envolvidos, mas especialmente para todas as famílias afetadas com a doença.
A equipa de investigadores já está a testar medicação oral capaz de bloquear a calpaína, embora por enquanto apenas em ratinhos.
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