Cada vez somos mais um país de “faz de conta”. Temos sempre no papel as melhores leis, que nos garantem segurança e confiança no Estado, que nos leva metade do salário com a promessa de uma velhice descansada e sem atropelos. Não é preciso estar muito atento para se perceber que os idosos em Portugal não são bem tratados. Se chegam a esta etapa da vida sem terem criado laços fortes de cumplicidade e afeto com familiares e amigos, a fria solidão invade-os sem piedade, de braço dado com a miséria absoluta.
Ser médico é muito mais do que fazer o diagnóstico e passar a receita. Muitas vezes, é importante dar a palavra amiga, falar dos netos e partilhar preocupações, para que o doente se sinta melhor logo à saída do consultório. Também é preciso ter a noção se o orçamento daquela pessoa comporta o valor da nossa prescrição. Por exemplo, se se trata de uma pneumonia ou outra infeção importante, não estando garantida a toma do antibiótico, há razão suficiente para o internamento hospitalar. Portanto, o exercício da medicina implica também ter em conta a componente social de cada indivíduo, sem o qual não é conseguido um tratamento completo. Sempre foi assim e continuará a ser.
Mas, nos tempos que vivemos, em que a incapacidade da Segurança Social é gritante, há cada vez mais pessoas sem doença a encherem os hospitais e a, potencialmente, comprometerem a resposta aos doentes reais, no serviço de urgência ou no internamento. Faria todo o sentido que voltássemos a ter um único Ministério da Saúde e da Segurança Social, tal a forma crescente em que os problemas sociais e de saúde se embrincam e confundem.
A Associação Portuguesa dos Administradores Hospitalares realizou um estudo referido ao dia 19 de fevereiro, com a colaboração de 74 por cento dos hospitais do SNS, em que concluiu que havia 960 camas com internamentos sociais, o que correspondia a 6 por cento das camas disponíveis, 50 por cento deles nos Serviços de Medicina Interna, com uma demora média de 67 dias. Tenho a firme convicção que este número está subavaliado, não só porque há ainda 26 por cento de hospitais do SNS que não foram incluídos, mas também porque é difícil obter uma informação clara acerca do momento em que o doente tem alta clínica.
Há algum tempo foram mudadas as regras dos lares de idosos. Quisemos fazê-los fantásticos, mas muitos não cumpriram as obrigações impostas, e foram fechados com estrondo. Agora a Segurança Social não consegue responder às solicitações e o tempo de resposta para colocação em lares é superior a 6 meses.
Quase todos os dias entram no Serviço de Urgência casos puramente sociais, trazidos pela polícia, pelos bombeiros ou até pela assistente social da zona, que recorre, como utente ao hospital, numa tentativa desesperada de resolver um problema que se arrasta há meses. Quando o chefe de equipa resolve acionar o número da “Emergência Social” depara-se com o vazio de soluções, que muitas vezes se resumem a uma ou duas noites numa pensão. Quando a única solução é a institucionalização em lar, tem de se internar o velhinho. Lá vai mais um, outros seis meses de espera, num internamento inapropriado.
Há doentes que vão para a Rede de Cuidados Continuados (RCC), por ser mais fácil conseguir lá a sua colocação do que num lar. A RCC “só” demora 2 meses a dar resposta… Depois, conseguida a recuperação possível, é a Unidade de Cuidados Continuados que se defronta com o problema social. Não há retaguarda familiar, nem dinheiro, nem casa. E lá fica o idoso, meses e meses, a comprometer ainda mais a resposta da RCC.
Acredito que o nível civilizacional de um país se pode aferir com a forma como trata os seus idosos. Com a nossa evolução demográfica, devíamos sentir a obrigação de os tratar bem. É um bom desejo de Ano Novo, que passemos a tratá-los melhor. Para isso, são precisos meios materiais e humanos. O “faz de conta” deve ser reservado para o teatro e para as histórias de encantar. No país real, queremos que todos possam viver com dignidade. Os velhos e os novos.
Autor: João Araújo Correia, Internista e Presidente da SPMI
A Sociedade Portuguesa de Medicina Interna (SPMI) é uma associação científica, fundada em 1951. Tem como finalidade promover o desenvolvimento da Medicina Interna ao serviço da saúde da população portuguesa. Promove ainda a investigação e o estudo de problemas científicos, bem como a organização de atividades educacionais, no âmbito da formação contínua, dirigidas aos médicos e à população em geral, no campo da Medicina Interna.