Neurocientistas da Fundação Champalimaud, em Lisboa, descobriram no cérebro da mosca-da-fruta um circuito neural que cria uma representação interna fiável da direção e velocidade do inseto, permitindo-lhe assim perceber para onde vai a cada momento. Os cientistas consideram que os resultados do estudo são “válidos para outros animais, incluindo os seres humanos”.
A perceção dos nossos movimentos é-nos tão natural que, fazendo parte de nós como um todo, está tão enraizada no nosso subconsciente, pelo que acabamos por subestimar a complexidade e a ‘fragilidade’ dos mecanismos biológicos que a sustentam.
Em certas doenças mentais ou na sequência de uma lesão cerebral, aspetos ligados à perceção do movimento são perdidos, e assim perdemos a capacidade de interagir com o mundo, referiu Eugenia Chiappe, neurocientista e líder da equipa de investigação, citada em comunicado da Fundação Champalimaud.
Para a investigadora, “o sentido preciso do movimento é uma parte importante do sentido de nós próprios. Não há experiência sensorial sem movimento”. Partindo deste pressuposto, a questão que importa esclarecer é o que faz o cérebro para distinguir as deslocações aparentes dos objetos que vemos à nossa volta quando nos movemos, e que são geradas pelas nossas próprias movimentações, daquelas que são fisicamente reais, isto é, em que são os objetos à nossa volta que se deslocam.
Quando andamos de comboio, a paisagem desfila pela janela em sentido contrário ao sentido em que o comboio se desloca, havendo a sensação de que é a paisagem a deslocar-se e não o comboio onde nos encontramos, mas o cérebro não se deixa enganar pelas aparências. Esta é a grande questão que os neurocientistas tentaram dar resposta.
A equipa de neurocientistas, constituída por Terufumi Fujiwara, Tomás L. Cruz, James P. Bohnslav e liderada por Eugenia Chiappe, estudou um tipo especial de neurónios na mosca-da-fruta, as células HS (horizontal system cells), situadas na zona do cérebro visual da mosca designada por ‘placa lobular’. “Sabemos que as células HS fazem parte de um sistema de monitorização que diz ao cérebro da mosca que foi ela que se moveu”, indicou Eugenia Chiappe.
Este tipo de células HS de “processamento do fluxo ótico”, também existe no cérebro dos primatas. Estes neurónios recebem, não só informação visual, relativa aos movimentos oculares e da cabeça, como também não visual. Portanto, a cientista considera que “seria de esperar que estes neurónios também recebam informação não visual relativa aos seus movimentos de locomoção”.
Mas como mostrar a função destes neurónios dado que “era muito difícil criar artificialmente num macaco a ilusão de que está a andar?”, referiu Eugenia Chiappe. O recurso a mosca-da-fruta permite mais facilmente realizar experiências de locomoção. Neste caso, “basta colocar a mosca em cima de uma bolinha suspensa no ar que roda quando a mosca anda e, ao mesmo tempo, registar diretamente a atividade das suas células HS”.
Para confirmar a contribuição de sinais não visuais à atividade das células HS da mosca, os cientistas apagaram as luzes e verificaram, referiu Eugenia Chiappe, que “na mosca-da-fruta, mesmo no escuro, as células HS continuam a monitorizar os movimentos corporais através de sinais não visuais”.
No estudo, que já se encontra publicado na revista científica ‘Nature Neuroscience’, os cientistas indicam que conseguiram perceber que estes neurónios integram os sinais visuais e não visuais quando se acendem novamente as luzes, ou seja, quando os dois tipos de sinais coexistem.
Os cientistas também concluíram que isto serve para melhorar a precisão da perceção que a mosca tem dos seus movimentos, referindo Eugenia Chiappe que “quando a mosca vê, os dois tipos de sinais cooperam”. Uma cooperação que se traduz num aumento da atividade das células HS na direção da marcha, enquanto que, noutras direções, a sua atividade diminui. Por outras palavras, graças a esta combinação de sinais, as células HS monitorizam e controlam o rumo da mosca.
Para confirmar a cooperação dos sinais visuais e não visuais, os cientistas realizaram uma terceira experiência, com o mundo exterior a ‘reagir’ de forma totalmente antinatural, ou seja, quando a mosca virava para um lado, o campo visual ‘rodava’ para o mesmo lado (no caso natural rodaria no sentido oposto ao do movimento). Neste caso, os cientistas verificaram que as células HS ‘perderam totalmente o norte’, dado que “a seletividade direcional das células HS diminuiu e tornaram-se incapazes de diferenciar as direções para dizer ao cérebro da mosca para que lado a mosca estava a virar”.
Os cientistas já conheciam que uma das funções das células HS era controlar a trajetória do voo da mosca, mas como é processada a informação quando uma mosca está a voar a grande velocidade, tendo em conta que o movimento dos objetos mais longínquos aparenta ser mais lento do que o dos objetos mais próximos? Como é que a mosca faz para ter uma ideia precisa da sua própria velocidade, para calcular corretamente a distância até ao sítio onde quer pousar e fazer uma aterragem controlada?
Os cientistas fizeram experiências com as moscas no escuro e verificaram que a atividade das células HS revelou estar fortemente correlacionada com a velocidade do corpo da mosca, tanto quando se desloca em linha reta como quando muda de direção. Isto levou os cientistas a concluir que, referiu Eugenia Chiappe, “é a partir da atividade das células HS que o cérebro da mosca calcula a sua verdadeira velocidade física, linear e angular”, ou seja, “a combinação dos sinais visuais e não visuais permite calibrar a informação visual, representando mais fielmente a velocidade da mosca”.
Com base nos resultados da investigação os neurocientistas concluíram que “as células HS são excelentes candidatos a detetores de movimentos próprios que permitem ao cérebro da mosca saber, a cada instante, para onde é que esta vai, e controlar o seu rumo”.
Eugenia Chiappe referiu que “o próximo passo desta investigação será saber quais são os sinais não visuais envolvidos”. Estes poderão incluir, em particular, a proprioceção, também designada por cinestesia, que nos permite conhecer, a cada instante, a posição no espaço das diversas partes do nosso corpo. “Além disso, também queremos perceber como estes sinais se combinam para fornecer a informação pertinente ao cérebro”.
A neurocientista conclui que “é importante perceber como os processos motores e visuais interagem com a perceção dos nossos próprios movimentos, porque essa coordenação está na base de muitas das nossas atividades do dia-a-dia, nomeadamente cognitivas”.