Quando Austrália, Índia, Japão e Estados Unidos – países aliados estratégicos sob o chamado Diálogo Quadrilateral de Segurança (Quad) – mudaram o foco para a luta contra a COVID-19, isso foi visto como mais uma das várias ‘guerras por procuração’ geradas pela pandemia.
O ‘Quad Vaccine‘, anunciado numa cimeira virtual dos líderes dos quatro países, em 12 de março, é baseado numa vacina desenvolvida pela transnacional norte-americana Johnson & Johnson, produzida pela India’s Biological E Limited, e financiada pelas outras duas parceirias. O plano é produzir mil milhões de doses até o final de 2022.
Vishnu Prakash, comentador sobre questões de segurança e ex-membro do corpo diplomático da Índia, disse à SciDev.Net que o Quad tem uma “agenda focada em elevar o custo do infortúnio na região por qualquer potência expansionista”.
Embora Vishnu Prakash e outros comentadores evitem cuidadosamente nomear qualquer país como o foco de Quad, há poucas dúvidas de que o poder expansionista em questão é a China.
Pankaj Mohan, um importante académico que se especializou em estudos chineses e do Leste Asiático, refere: “A imprensa chinesa tem-se manifestado contra a ‘NATO asiática’ e, notavelmente, o Diário chinês “Global Times”, em 13 de março, falou sobre as vacinas COVID-19 a serem usadas para enfraquecer a influência da China em toda a região.”
Srikanth Kondapalli, professor de estudos chineses na Universidade Jawaharlal Nehru, Nova Delhi, refere que embora a China seja reconhecida como ‘fábrica para o mundo’, a Índia há muito tempo leva vantagem no que diz respeito ao fabrico de medicamentos e vacinas, de modo que tem a reputação de ser ‘a farmácia do mundo’.
“A vantagem da Índia começa com o facto de que já estava a produzir 60% das vacinas do mundo, mesmo antes do surgimento da pandemia COVID-19”, refere Srikanth Kondapalli. “Internamente, a Índia administra 50 milhões de doses de vacina por ano para diferentes doenças, num país com 1,3 mil milhões de pessoas.”
O Serum Institute of India (SII), de propriedade privada indiana, que está entre os principais fabricantes do mundo, firmou um acordo para fabricar e armazenar a vacina Covishield da Oxford University-AstraZeneca, diz Srikanth Kondapalli. “Como garantia, havia uma vacina candidata de reserva a Covaxin, desenvolvida e fabricada pela empresa local Bharat Biotech.”
Srikanth Kondapalli refere que o primeiro-ministro indiano Narendra Modi se interessou pessoalmente pelo desenvolvimento e lançamento antecipado de vacinas, chegando a visitar unidades de produção. A Índia comprometeu-se desde cedo no fornececimento de vacinas para a COVAX, liderada pela Organização Munfial da Saúde (OMS) – uma iniciativa destinada a ajudar os países mais pobres a ter acesso a vacinas – bem como bilateralmente a países individualmente, e isso logo levou à competição com a China em países vizinhos, como Sri Lanka, Nepal e Mianmar, diz Kondapalli. “A China tem interesses profundos nesses países, mas não poderia fornecer a esses países doses suficientes.”
“A exceção é o Paquistão, onde a China desfruta de quase um monopólio que lhe permite fornecer e testar a sua principal vacina, CoronaVac, fabricada pela Sinovac Biotech”, esclarece Kondapalli. O outro principal fabricante de vacinas da China, Sinopharm, também negoceia a exportação de vacinas para cerca de 50 países em todo o mundo.
Srikanth Kondapalli esclarece que o atrito entre os dois países asiáticos começou com o uso do termo ‘vírus da China’ na imprensa indiana para descrever a COVID-19. “A imprensa indiana é independente e o termo foi cunhado pelo então presidente dos EUA, Donald Trump – foi pressionado pela China antes que a OMS começasse a usar o nome COVID-19.”
Guerra entre a Índia-China foi evitada
Pior do que questões mesquinhas como dar o nome a um vírus, a Índia e a China chegaram perto da guerra no meio da crise COVID-19. Os confrontos que eclodiram em junho ao longo de sua longa fronteira comum levaram a mais de 24 mortes e ambos os países reuniram tropas e blindados na região do alto Ladakh até que, em fevereiro, houve uma negociação.
Rajeswari Rajagopalan, especialista em assuntos da China e ilustre membro da Observer Research Foundation, um importante grupo de estudos baseado em Nova Delhi, diz que o fornecimento da COVID-19 “transformou-se rapidamente em política de poder por causa da segurança e da dinâmica estratégica entre a China e a Índia”.
“A China tem feito muito trabalho de divulgação nos países vizinhos da Índia e tem tentado criar uma narrativa favorável sobre a sua disposição em fornecer assistência relacionada à COVID-19”, disse o especialista.
“Mas a velocidade com que a Índia foi capaz de fabricar, armazenar e fornecer doses de vacinas a um grande número de países criou uma boa imagem internacional da Índia – especialmente num momento em que os países desenvolvidos são acusados de acumular vacinas”, diz Rajagopalan.
“Foram levantadas questões sobre a segurança das vacinas chinesas por países africanos e pelo Brasil”, refere Rajagopalan. “A imprensa oficial da China divulgou o máximo sobre as suas ofertas de vacinas enquanto denunciava as vacinas fabricadas por outros países, incluindo a Índia – mas isso não foi suficiente para suprimir as preocupações com a segurança.”
Em contraste, as informações sobre as vacinas da Índia estão prontamente disponíveis nos websites das empresas. A Índia também não permitiu que as obrigações domésticas prejudicassem as promessas de apoiar as necessidades de outros países por meio de seu programa “Vaccine Maitri” (Vaccine Friendship).
Ashwini Kumar Choubey, ministro da saúde indiano, informou o parlamento, em 16 de março, que o Governo tinha fornecido 58 milhões de doses de vacinas COVID-19 a 70 países.
Bangladesh, o maior beneficiário, recebeu nove milhões de doses e numa viagem de Estado de Narendra Modi, Primeiro-ministro da Índia, em março, foram feitos acordos para mais 30 milhões de doses e uma entrega gratuita de 1,2 milhão de doses. Outros destinatários incluem Butão, Nepal e Mianmar. Mais além, Canadá, México, Arábia Saudita, Omã, Kuwait, Emirados Árabes Unidos, Caribe e nações da América do Sul, como o Brasil, e os países africanos Quénia, África do Sul e Ruanda são destinatários.
O Serum Institute of India planeia aumentar a produção para mil milhões de doses por ano, até finais de 2021, e outras empresas indianas devem aumentar significativamente a produção em geral. A Bharat Biotech, por exemplo, fechou um contrato para vender, este ano, 100 milhões de doses da sua vacina Covid-19 COVAXIN nos Estados Unidos.
No entanto, em meados de março, a Índia estava atrasada no seu programa doméstico, tendo realizado apenas 54 milhões de inoculações e exportado 60 milhões de doses para todo o mundo. Com o Governo a enfrentar críticas locais devido ao surgimento de uma nova onda de infeções de COVID-19, obrigou a uma desaceleração das exportações.
Enquanto isso, a China tem procurado acordos agressivos de vacinas. O porta-voz do Ministério das Relações Exteriores da China, Wang Wenbin, disse que, além do Paquistão, a China está a fornecer ajuda em vacinas ao Brunei, Nepal, Filipinas, Mianmar, Camboja, Laos, Sri Lanka, Mongólia, Palestina, Bielorrússia, Serra Leoa, Zimbábue e à Guiné Equatorial.
De acordo com uma nota emitida pelo consulado chinês em Mumbai, Wang Wenbin disse numa conferência de imprensa, no mês passado, que as empresas chinesas têm produzido vacinas conjuntas com diversos parceiros estrangeiros. “As vacinas da Sinopharm e Sinovac foram exportadas para países como Emirados Árabes Unidos, Marrocos, Indonésia, Turquia, Brasil e Chile, onde foram realizados estudos clínicos.
“A China tem agido por meio de ações concretas com base no compromisso solene do presidente Xi Jinping de tornar as vacinas COVID-19, desenvolvidas e implementadas na China, um bem público global, contribuindo assim para maior acessibilidade e disponibilidade de vacinas nos países em desenvolvimento”, disse Wang Wenbin.
Situação em África
Pelo menos 19 países africanos aguardaram para receber as vacinas chinesas COVID-19, de acordo com o porta-voz do Ministério das Relações Exteriores da China, Wang Wenbin.
Wang Wenbin foi citado na imprensa estatal em 22 de fevereiro, dizendo que a China havia doado vacinas ao Zimbabué e à Guiné Equatorial e que o país usaria todos os recursos à sua disposição para ajudar a África a combater a pandemia. A primeira remessa de 200.000 doses da vacina chinesa chegou ao Zimbabué em 15 de fevereiro.
Além de doações, a China assinou acordos bilaterais com o Egito, Tunísia, Argélia e Marrocos para a exportação de vacinas COVID-19. Com a primeira remessa da vacina da Sinopharm a chegar a Marrocos no final de janeiro.
Os desenvolvimentos seguem as promessas feitas aos países africanos pelo presidente chinês Xi Jinping em junho passado na cimeira China-África de que a África beneficiaria com a distribuição massiva de vacinas chinesas.
Mas alguns alertam que a corrida por vacinas chinesas pode ser contraproducente para o continente, devido a questões de segurança e eficácia, decorrentes do facto da China conceder aprovações para as suas vacinas sem publicar dados sobre testes em humanos em revistas especializadas.
Joachim Osur, diretor técnico da Amref Health Africa e reitor da Escola de Ciências Médicas da Amref International University, Nairóbi, diz que a África está desesperada para garantir vacinas para proteger a sua população, especialmente devido ao abastecimento lento do ocidente.
“As vacinas chinesas podem ser uma alternativa mais barata e acessível, mas a que custo?” Questiona Joachim Osur. As principais vacinas COVID-19 da China, da Sinovac e da Sinopharm, ainda estão em avaliação? E por quem?
“Os países da África Subsaariana dependem da OMS para testar e verificar, em seu nome, as vacinas quanto à segurança e eficácia, por isso será perigoso para eles aceitar e usar vacinas que não passem por esse processo porque não têm meios para as verificar de forma independente”, explica Joachim Osur.
Campo de batalha brasileiro
O Brasil, que tradicionalmente mantinha boas relações diplomáticas com a China, tornou-se um dos principais campos de batalha das vacinas para os dois gigantes asiáticos.
Embora o presidente brasileiro, Jair Bolsonaro, tenha sido um adversário ferrenho das medidas de contenção da pandemia e vacinação no país, ele demonstrou uma desaprovação particular sobre a CoronaVac da China. Jair Bolsonaro está a ser pressionado pelo seu rival político e governador do Estado de São Paulo, João Doria.
No dia 17 de janeiro, a primeira brasileira – uma enfermeira – foi vacinada contra o novo coronavírus no país. A enfermeira recebeu uma dose da CoronaVac, produzida no Brasil, numa parceria entre a chinesa Sinovac Biotech e o Instituto Butantan, líder no desenvolvimento e produção de antígenos vacinais no Brasil, localizado em São Paulo. O que foi visto como uma derrota política de Jair Bolsonaro.
Em setembro de 2020, o Instituto Butantan fechou contrato com a Sinovac para a entrega de 46 milhões de doses da CoronaVac até dezembro.
Ainda em setembro, a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e AstraZeneca firmaram um convénio que concede à instituição brasileira acesso a 100,4 milhões de doses do elemento farmacêutico ativo para processamento final e controlo de qualidade no Brasil, bem como condições gerais de transferência de tecnologia.
Desenvolvida pela Oxford University com direitos de produção e distribuição pela AstraZeneca, a vacina Covishield começou a ser produzida em larga escala no Brasil no dia 8 de março. A meta da Fiocruz era produzir 3,8 milhões de doses em março. De 29 de março a 03 de abril, a Fundação planeia entregar 2,4 milhões de doses da vacina.
Enquanto o governo federal participava do acordo Fiocruz / AstraZeneca, o presidente Bolsonaro e o então ministro da Saúde Eduardo Pazuello evitavam o acordo Butantan-Sinovac, do governador paulista João Doria, seu ex-aliado e agora adversário político.
Bolsonaro, que havia criticado abertamente a CoronaVac em diversas ocasiões, cedeu no início de janeiro e assinou uma medida provisória que permite um acordo entre o Instituto Butantan e o Ministério da Saúde que concede 100 milhões de doses da vacina a serem incorporadas ao Plano Nacional de Imunizações – que inclui a Covishield e CoronaVac.
Em fevereiro de 2021, a Fundação tinha recebido do Serum Institute of India dois milhões de doses prontas para serem administradas. A Fiocruz espera receber o princípio ativo para produzir mais de 100 milhões de doses até julho. No segundo semestre, a expectativa da Fiocruz é produzir mais 110 milhões de doses com tecnologia para a produção nacional do princípio ativo. Cerca de 2.000 voluntários participaram dos testes da Covishield, conduzidos pela Universidade Federal de São Paulo em 2020.
Além da Covishield e da Coronavac, o Brasil também assinou recentemente acordos com a Precisa Medicamentos / Bharat Biotech (para aquisição de 20 milhões de doses da Covaxin), como com a Pfizer, Janssen, Sputnik V, e aderiu ao Covax Facility da OMS. Os Estados, Municípios e o setor privado podem comprar vacinas de forma independente.
Gonzalo Vecina Neto, professor da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo e fundador da Anvisa, espera que as negociações para mais vacinas cheguem a bom porto. “As doses que temos são suficientes apenas até janeiro de 2022 – se tivermos mais vacinas, podemos terminar mais rapidamente a vacinação da população. E também é importante pensar nos jovens e nas crianças, que por enquanto não estão incluídos no plano de vacinação”, esclarece o especialista à SciDev.Net.
Vacina Covishield e os coágulos sanguíneos
Mas a mãe de todas as guerras por procuração da vacina COVID-19 é a que está a ser travada pela Covishield. A vacina desenvolvido pela University of Oxford e a empresa sueca-britânica AstraZeneca apareceu obscurecida pela retirada traumática do Reino Unido da União Europeia, que se tornou definitiva em 1 de janeiro de 2021.
Desde o seu lançamento, a vacina Covisheld tornou-se objeto de reclamações entre o Reino Unido e a União Europeia, sobre eficácia e segurança.
Em 25 de janeiro, o jornal alemão Handelsblatt afirmou que a eficácia da vacina era de apenas 8% entre os idosos, ignorando dados em contrário publicados no The Lancet.
Em seguida, vários países europeus suspenderam o uso da vacina Covishield por temerem de que fosse responsável pelo desenvolvimento de coágulos sanguíneos nas pessoas vacinadas.
Manu Raj, um importante epidemiologista baseado em Kerala, Índia, comentou que as suspensões foram desaconselhadas, pois “nenhuma explicação biológica forte foi fornecida sobre o motivo pelo qual a vacina causaria coágulos sanguíneos. Os Coágulos sanguíneos graves são uma característica comum da infeção COVID-19 grave que pode ser totalmente prevenida pela mesma vacina”.
Assim que a questão dos coágulos sanguíneos foi resolvida, com o regulador da UE, a Agência Europeia de Medicamentos, ao declarar que vacina Covishield é segura, outra discussão explodiu – desta vez sobre o fornecimento da vacina à UE.
Sob os termos de um contrato com a AstraZeneca, o Reino Unido tinha prioridade sobre as doses da Covishield nas unidades de Oxford e Staffordshire, embora a UE considerasse isso restritivo e violador das promessas de fornecimento de vacinas.
Na quarta-feira, 24 de março, o governo do Reino Unido e a Comissão Europeia divulgaram um comunicado conjunto dizendo que estão a trabalhar em uma solução. “Dadas as nossas interdependências, estamos a trabalhar em medidas específicas que podemos tomar – a curto, médio e a longo prazo – para criar uma situação vantajosa para todos e expandir o fornecimento de vacinas para todos os nossos cidadãos.”
“No final, a abertura e a cooperação global de todos os países serão a chave para finalmente superar esta pandemia e garantir uma melhor preparação para enfrentar os desafios futuros”, refere o comunicado conjunto.
Mas, a falta de cooperação global foi mais palpável nas diferenças que surgiram na Organização Mundial do Comércio (OMC) sobre direitos de propriedade intelectual, incluindo as patentes de vacinas COVID-19. Em 2 de outubro, a Índia e a África do Sul solicitaram à OMC que autorizasse renúncias de direitos de propriedade intelectual sobre vacinas e tecnologias relacionadas à pandemia. Desde então, pelo menos 100 países apoiaram a proposta.
De acordo com os “Médicos Sem Fronteiras” (MSF), os países desenvolvidos, especialmente a UE, Reino Unido e os EUA, e órgãos que representam as grandes empresas farmacêuticas opõem-se a qualquer isenção por a considerarem potencialmente contraproducente.
Christos Christou, presidente internacional dos MSF, disse num comunicado à imprensa, em 9 de março: “Os países devem parar de obstruir (a proposta à OMC) e mostrar liderança necessária para cumprir a ‘solidariedade global’ que declararam tantas vezes durante esta pandemia.”
Artigo produzido por SciDev.Net’s Asia & Pacific desk