Hoje assinalamos o Dia Europeu dos Direitos dos Doentes. Esta celebração é um bom momento para refletir sobre os desafios relacionados com a saúde nos dias de hoje. O mundo mudou e essa mudança trouxe novos deveres e direitos para os cidadãos e para a sociedade.
A melhoria das condições de vida (água canalizada, saneamento público, mais alimentos, conservação dos alimentos pelo frio, etc.) e os avanços do conhecimento médico (vacinas, antimicrobianos para tratar infeções, a anestesia que permitiu fazer operações, o investimento na prevenção e correção dos fatores de risco, e muito mais) duplicaram a esperança de vida nos países desenvolvidos em menos de um século. Em 1920, a esperança média de vida dos portugueses era de cerca de 35,7 e 40 anos para as homens e mulheres, respetivamente, mas hoje é de 77,7 e 82,3.
Há um século as sociedades europeias tinham um grande número de crianças, mas só uma parte delas chegava à velhice. Hoje caminhamos para uma sociedade composta maioritariamente por idosos, com a natalidade a decrescer. Esta inversão fez aumentar as doenças do envelhecimento (artroses, aterosclerose e demência, por exemplo) bem como o número de doenças em pessoas com mais de 65 anos (multimorbilidade). Muitas destas doenças são preveníveis ou minimizáveis com a correção dos hábitos de vida. A prioridade agora não é de aumentar o número de anos vividos, mas sim de melhorar a qualidade de vida dos anos que vivemos, e para isso temos duas apostas prioritárias:
■ Fazer com que cada um de nós seja guardião da sua saúde (controlar o peso, eliminar o tabaco, reduzir o sal na comida, fazer exercício físico regular e socializar/conviver muito).
■ Manter o tratamento das doenças conhecidas com o mínimo de remédios possível.
A segunda grande alteração na sociedade atual é a facilidade do acesso à informação. As notícias de qualquer lado do mundo chegam pela televisão, telemóvel e redes sociais, com informação que nem sempre é confirmada. Esta realidade expõe-nos a factos, valores, culturas, civilizações e organizações de todo o mundo, muitas radicalmente diferentes das que conhecemos. Essa diferença é uma oportunidade de conhecimento e melhoria, se for confirmada e contraditada, mas pode também ser uma fonte de infortúnio se for perversa. Estes factos influenciam a forma como as pessoas hoje se relacionam com os serviços de saúde e como interpretam o que devem e o que não devem fazer para cuidar da sua saúde:
■ Há mais oportunidade de acesso a informação que pode melhorar a vida do cidadão, e por isso há mais oportunidades para cada um de nós cuidar e se responsabilizar pela preservação da sua saúde.
■ Há mais informação enganosa que pode prejudicar as pessoas que não confirmam a validade dessa informação (há quem não vacina os filhos, sujeitando-os a doenças evitáveis e pondo em risco concidadãos vulneráveis, se forem contagiados).
■ Há quem rejeita o acesso ao saber cientificamente documentado, expondo-se a procedimentos de valor não confirmado e/ou atrasando tratamentos que podem salvar vidas, se instituídos a tempo.
É importante que a informação encontrada seja confirmada e discutida com os técnicos de saúde.
O terceiro grande desafio para a nossa sociedade é a artificialização da vida, decorrente dos progressos científicos. A medicina e a tecnologia conseguem construir máquinas que suportam e substituem funções essenciais para a vida (corações, rins ou pâncreas), ou que são importantes para a qualidade de vida (articulações, ossos, pele, hormonas, etc.). Esta relação consegue também corrigir o ADN de pessoas vivas para reparar defeitos genéticos. Consegue fertilizar, artificialmente, ovos de mamíferos e fazê-los crescer fora do organismo materno até ao nascimento. Consegue tratar e curar doenças que há pouco tempo eram inevitavelmente fatais (cancro, infeções graves ou doenças autoimunes). Consegue implantar sensores/estimuladores cerebrais para modificar o movimento e o comportamento.
Esses sucessos, inimagináveis há poucos anos, levantam novas questões éticas, uma vez que têm um preço cada vez maior e impossível de ser pago pelos dinheiros públicos. Por isso o grande desafio para a saúde nos tempos que correm assenta em pilares sobre os quais todos temos de refletir:
■ Qual é a responsabilidade de cada cidadão na preservação da sua saúde e que consequências têm os comportamentos desleixados e/ou irresponsáveis na sustentabilidade dos sistemas de saúde?
■ O cidadão será, cada vez mais, chamado a ser cuidador da sua saúde e dos que lhe são próximos em condição vulnerável e dependente?
■ Como vamos gerir os recursos financeiros e organizacionais para facultar o acesso à saúde a todos os que necessitam de ajuda? Essa alocação tem de assentar em critérios aceites pela sociedade, com fundamento científico, consonantes com os valores da sociedade e que possam ser correspondidos pelos recursos disponíveis.
O acesso à melhor saúde para todos exige o melhor empenho de todos.
Autor: António Carneiro, Internista e Coordenador do NEBio
O Núcleo de Estudos de Bioética (NEBio) da Sociedade Portuguesa de Medicina Interna (SPMI) centra a sua atuação na investigação, formação e consciencialização de profissionais de saúde e da população no âmbito das questões éticas na área da Medicina. Este grupo é constituído por internistas associados da SPMI.