Investigadores da Fundação Champalimaud dão mais um passo importante na compreensão sobre o funcionamento do cérebro. A equipa de investigadores recorre à mosca da fruta para levar a cabo estudos de neurociência. Uma das últimas descobertas é descrita em artigo publicado na revista científica “Neuron”.
Em comunicado, a Fundação Champalimaud descreve uma experiência observada por uma equipa de investigação, em que “uma mosca da fruta caminha sobre uma pequena bola de esferovite numa passadeira 3D flutuante. Numa sala completamente escura, um elétrodo regista neurónios do sistema visual no cérebro da mosca, transmitindo um misterioso fluxo de atividade neural, subindo e descendo como uma onda senoidal”.
A observação feita por Eugenia Chiappe, neurocientista na Fundação Champalimaud, levou-a considerar que se estava perante uma descoberta excecional. “Estavam a gravar a atividade de neurónios do sistema visual, mas a sala onde se encontravam estava completamente escura, pelo que não havia qualquer estímulo visual que pudesse estar a desencadear aquela atividade neuronal”.
Para a cientista “isto só podia querer dizer que ou aquela atividade inesperada era algum tipo de ‘barulho de fundo’, o que nos parecia improvável, ou então era resultado de um estímulo não visual”. Eugenia Chiappe, citada no comunicado, acrescentou: “Depois de termos investigado a possibilidade de estarmos perante algum tipo de interferência, descartamos essa hipótese e tivemos a certeza: os neurónios estavam a acompanhar de forma fiel os passos que o animal dava.”
Ao longo de alguns anos a equipa de investigadores, de que faz parte Eugenia Chiappe, estudou diversos aspetos da descoberta que descreve agora em artigo na Neuron: a existência de uma rede neural bidirecional que liga as pernas e o sistema visual com a função de moldar o andar.
Como descreveu a cientista “um dos aspetos mais notáveis da nossa descoberta é que esta rede suporta a caminhada em duas escalas de tempo diferentes simultaneamente”, e acrescentou: “Ao mesmo tempo que opera numa escala de tempo rápida, capaz de monitorar e corrigir cada etapa, também promove o objetivo comportamental do animal”.
O “humor” dos neurónios
Eugenia Chiappe esclareceu que “a visão e a ação podem parecer pouco relacionadas, mas na verdade estão intimamente associadas; basta escolher um ponto na parede e tentar colocar o dedo nele com os olhos fechados”. Mas, acrescentou: “Ainda assim, pouco se sabe sobre a base neural desta ligação.”
Os investigadores centraram a atenção num tipo específico de neurónio visual que é conhecido por se ligar às áreas motoras do cérebro, como explicou Terufumi Fujiwara, primeiro autor do estudo, “queríamos identificar os sinais que este tipo de neurónios recebe e entender se, e como, participa no movimento”.
Terufumi Fujiwara usou uma técnica poderosa chamada gravação de patch de célula inteira que lhe permitiu explorar o “humor” dos neurónios, que pode ser “positivo” ou “negativo”.
“Os neurónios comunicam entre si através de correntes elétricas que alteram a carga geral do neurónio recetor. Quando a carga do neurónio é mais positiva, é mais provável que este se torne ativo e depois transmita sinais para outros neurónios. Por outro lado, se a carga for mais negativa, o neurónio fica mais inibido”, explicou Terufumi Fujiwara.
Ligação neurónio – movimento
Os investigadores seguiram a carga dos neurónios e observaram que estava sincronizada com os passos do animal de maneira a que cada movimento podia ser melhor ajustado.
Eugenia Chiappe explicou: “Quando o pé estava no ar, o neurónio estava mais positivo, pronto para, se necessário, enviar instruções de ajuste para a região motora. Por outro lado, quando o pé estava no chão, impossibilitando ajustes, a carga era mais negativa, inibindo efetivamente o neurónio”.
As implicações na velocidade de movimento
Numa análise mais detalhada os investigadores observaram que a carga dos neurónios também estava a mudar numa escala temporal mais longa. Especificamente, quando a mosca andava rápido, a carga tornava-se cada vez mais positiva.
“Acreditamos que essa variação ajuda a manter o objetivo comportamental do animal”, explicou Terufumi Fujiwara. “Quanto mais tempo a mosca estiver a andar rápido, maior é a probabilidade de precisar de ajuda para manter esse plano de ação. Portanto, os neurónios ficam cada vez ‘mais alerta’ e prontos para serem recrutados para garantirem o controlo do movimento”.
A rede neuronal e a marcha
Depois de muitas experiências, os investigadores criaram uma descrição mais completa da rede neural e demonstraram o envolvimento direto na marcha. Mas, como explicou Eugenia Chiappe, o estudo, para além de revelar um novo circuito visuomotor, fornece também uma nova perspetiva sobre os mecanismos neurais de movimento.
“A atual visão de como o comportamento é gerado é muito ‘top-down‘, isto é, o cérebro é que comanda o corpo. Mas os nossos resultados fornecem um exemplo claro de como os sinais provenientes do corpo contribuem para o controlo do movimento. Embora estas descobertas tenham sido feitas no modelo animal mosca da fruta, especulamos que mecanismos semelhantes possam existir em outros organismos. As representações relacionadas com a velocidade são críticas durante a exploração, navegação e perceção espacial, funções comuns a muitos animais, incluindo os humanos”, concluiu a cientista Eugenia Chiappe.