A síndrome inflamatória multissistémica em crianças (MIS-C), que se acredita estar ligada à COVID-19, prejudica o coração a tal ponto que algumas crianças irão precisar de acompanhamento e intervenções durante toda a vida, referiu o autor do estudo de revisão científica publicado ontem, 4 de setembro, na revista da The Lancet, a EClinicalMedicine.
Os estudos de caso também mostram que a MIS-C pode atingir crianças aparentemente saudáveis sem aviso, três ou quatro semanas após infeções assintomáticas, referiu o neonatologista Alvaro Moreira do Centro de Ciências da Saúde da Universidade do Texas em San Antonio, EUA.
“De acordo com a literatura, as crianças não precisam apresentar os sintomas respiratórios superiores clássicos de COVID-19 para desenvolver a MIS-C, o que é assustador”, referiu Alvaro Moreira. “As crianças podem não apresentar sintomas, ninguém sabe que elas têm a doença e, algumas semanas depois, podem desenvolver essa inflamação exagerada no corpo.”
Trabalho de investigação
A equipa de investigadores analisou 662 casos de MIS-C relatados em todo o mundo entre 1 de janeiro e 25 de julho. Entre os resultados verificou-se:
■ 71% das crianças foram internadas em unidade de cuidados intensivos (UCI).
■ 60% apresentaram choque.
■ O tempo médio de permanência no hospital foi de 7,9 dias.
■ 100% com febre, 73,7% com dor abdominal ou diarreia e 68,3% com vómitos.
■ 90% realizaram exame de ecocardiograma (EKG) e 54% dos resultados foram anormais.
■ 22,2% das crianças necessitaram de ventilação mecânica.
■ 4,4% necessitaram de oxigenação por membrana extracorpórea (ECMO).
■ 11 crianças morreram.
“Esta é uma nova doença infantil que se acredita estar associada ao SARS-CoV-2”, referiu o investigador, e acrescentou: “Pode ser letal porque afeta vários sistemas de órgãos. Quer seja o coração e os pulmões, o sistema gastrointestinal ou o sistema neurológico, tem tantas faces diferentes que inicialmente era difícil para os médicos entenderem.”
A quantidade de inflamação na MIS-C ultrapassa duas condições pediátricas semelhantes, a doença de Kawasaki e a síndrome do choque tóxico. “A salvação é que o tratamento destes pacientes com terapias comumente usadas para Kawasaki – imunoglobulina e glicocorticosteroides – têm sido eficazes”, referiu Alvaro Moreira.
Anormalidades cardíacas
O estudo revelou que a maioria das 662 crianças sofreu envolvimento cardíaco, indicado por marcadores como a troponina, que é usada com grande precisão em adultos para diagnosticar ataques cardíacos.
“Quase 90% das crianças, ou 581, foram submetidas a um ecocardiograma porque apresentavam uma manifestação cardíaca significativa da doença”, indicou o investigador.
Os danos mostram:
■ Dilatação dos vasos sanguíneos coronários, um fenómeno também observado na doença de Kawasaki.
■ Fração de ejeção deprimida, indicando uma capacidade reduzida do coração de bombear sangue oxigenado para os tecidos do corpo.
■ Quase 10% das crianças tinham aneurisma de um vaso coronário. “Este é um alongamento localizado ou inchaço do vaso sanguíneo que pode ser medido num ultrassom do coração”, indicou Alvaro Moreira.
■ Crianças com aneurisma correm maior risco de um evento futuro. “As crianças vão precisar de observação significativa e acompanhamento com múltiplos exames de ultrassons para ver se isso a condição vai resolver-se ou se é algo que terão pelo resto das suas vidas”.
“E isso é catastrófico para um pai que teve um filho anteriormente saudável e ele / ela está na percentagem muito pequena de indivíduos que desenvolveram MIS-C após a infeção por COVID-19”, referiu o investigador.
Outra descoberta dos estudos de caso foi: quase metade dos pacientes com MIS-C tinha uma condição médica subjacente e, desses, metade dos indivíduos era obeso ou estava com sobrepeso.
“Geralmente, tanto em adultos como em crianças, vemos que os pacientes obesos terão um pior resultado”, esclareceu Alvaro Moreira.
Quando comparados com a infeção inicial por COVID-19, os marcadores inflamatórios na MIS-C eram muito mais anormais. Por exemplo, a troponina, o marcador usado em adultos para diagnosticar ataques cardíacos, estava 50 vezes o seu nível normal em crianças com MIS-C.
“As evidências sugerem que as crianças com MIS-C têm uma inflamação imensa e potencial lesão do tecido do coração, e vamos ter que seguir essas crianças de perto para entender quais as implicações que elas podem ter a longo prazo”, concluiu Alvaro Moreira.